domingo, 10 de fevereiro de 2008

A Bela Cidade

Com a espada desembainhada e sentado em uma calçada, um bérbere escrevia na areia que se acumulava na sarjeta. Com precisão e destreza deixando a desejar, contabilizava as vidas que havia ceifado naquele dia. Visualizava os rostos, os olhos, as expressões de cada um que tinha encontrado, fossem mulheres idosas, crianças, animais domésticos ou guerreiros já feitos.

No alto tudo que se via era a enorme coluna de fumaça, fruto do incêndio que consumia a antiga e orgulhosa cidade, que agora se mostrava escancarada, aberta aos saqueadores e vencedores. Mas o bérbere não se mexia, algo lhe faltava, a batalha tinha sido seu objetivo com combates justos contra adversários formidáveis, mas não havia sido o que havia encontrado. O início do dia fora promissor, com a invasão das muralhas, a grande escalada que os permitiu entrar na cidade e tomar posse. Contudo, ele imaginava que aquela havia sido sua hora de lutar de maneira brilhante e como uma estrela cadente, morrer no instante seguinte em meio à glória.

O Destino não havia sido generoso, sobreviver significou compactuar com o que veio a seguir, com o massacre e a violência contra não guerreiros, pessoas fracas que imploravam por suas vidas. Sentado ali, ele pensava em uma forma de espiar seus atos, de pôr um fim digno a uma vida que passado o momento certo de morrer, era agora vazia de propósito e pervertida pela ganância e baixeza. Sabia-se morto, não fisicamente, mas em sua própria essência.

Com o cansaço e a falta de ter o que fazer, dormiu no mesmo lugar, sobre a contagem de corpos que esboçara. Na sarjeta, sonhou com liberdade, com belas mulheres e com a benção do Altíssimo chegando até ele.

Acordou ainda com a lua no céu, o que o deixou encantado com a beleza das inúmeras luzes que agora podiam ser vistas com a fumaça sendo levada pelo vento. Os gritos já tinham cessado e a cidade ainda era bela e cheia de luz. As torres semi-destruídas, as construções ainda não inteiramente saqueadas, tudo aquilo era belo e ele queria ter feito parte de sua vida. Sua admiração pelo que havia destruído tornava sua situação dolorosa, muito além do que ele podia.

Tomado pela vergonha não levou nada da cidade que ajudara a conquistar, voltou com sua própria espada, elmo e malha, sujo de sangue e de poeira. Preferiu manter-se no acampamento do lado externo, onde o cheiro de sangue e fumaça era menos intenso.

Um comentário:

Nil disse...

Um bérbere bonzinho?? Quase um historiador... :P